Agora que
estreou nas salas o último filme de M. Night Shyamalan, Depois da Terra, uma fantasia pós-apocalíptica protagonizada por
Will e Jaden Smith, instalou-se-me a vontade de escrever não sobre este mas sobre
um outro filme do cineasta, A Senhora da
Água, de 2006, com Bryce Dallas Howard, Paul Giamatti e o próprio
Shyamalan, que aborda as mais pertinentes questões para a vida actual neste
mundo, em vez de para a vida num mundo depois deste…
Para este
cineasta, as histórias fantásticas que filma, sejam elas sobre fantasmas (O Sexto Sentido), sobre super-heróis (Unbroken/O Protegido), sobre
extraterrestres (Sinais), sobre
monstros (A Vila) ou sobre ninfas (A Senhora da Água), são um pretexto para
abordar questões profundamente filosóficas. Enquanto em O Sexto Sentido tínhamos a questão da verdadeira natureza da
existência, em Unbroken/O Protegido
tínhamos a questão da tomada de consciência dos poderes que possuímos, em Sinais tínhamos a questão da importância
da fé, e em A Vila tínhamos a questão
do posicionamento face ao medo de perdermos aqueles que amamos, em A Senhora da Água temos a síntese de
todas essas questões: Qual o sentido da existência? Qual o nosso lugar e papel
no mundo? Qual o resultado da fé (ou da sua ausência) na nossa vida? Qual o
significado das tragédias que nos afectam a nós e aos outros? Que impacte têm
as nossas acções e/ou a nossa inércia sobre o nosso futuro e o dos outros? De
que modo poderão as nossas supostas fraquezas e os nossos alegados defeitos vir
a ser úteis? Que relevância possuem determinados detalhes a que não damos
importância? Estaremos manietados pelo determinismo ou, pelo contrário, seremos
dotados de livre arbítrio? E em que é que a crença num ou noutro nos fortalece
ou fragiliza?
Tal como em Sinais (o reverendo) e em A Vila (a comunidade), em A Senhora da Água temos personagens que
vivem assombradas pelo seu passado trágico; personagens que desistem de viver
“normalmente”, escudando-se numa existência, de certo modo, marginal
(Cleveland, Mr. Leeds e outros moradores do condomínio). No entanto, essas
personagens não conseguem fugir a esse passado, são movidas a lutar para
esconjurar os demónios que as perseguem e a curar as feridas que as atormentam.
Cleveland (personagem central no filme, tratando dos aspectos materiais do
condomínio, mas cuidando também da alma dos seus moradores) consegue-o com a
ajuda de uma ninfa do mar – uma imitação etérea de si próprio –, como que
mostrando que a nossa salvação reside em nós próprios.
Neste sentido, A Senhora da Água, sob a máscara de
fábula, de conto infantil com contornos fantásticos, em que estão presentes, de
facto, todos os ingredientes – ninfas, receptores, guardiães, curandeiros,
intérpretes, associações, monstros –, é, acima de tudo, um filme que nos
confronta com as nossas dúvidas (e certezas) de seres adultos e que nos propõe
a reflexão sobre elas. A Senhora da Água
é também um enormíssimo testemunho de fé de Shyamalan na humanidade: perante a
angústia e o desânimo de Cleveland, Story afirma: “Tu tens uma razão de ser.
Todos os seres têm uma razão de existir”; mais tarde, perante a pergunta de Mr.
Leeds “O Homem merece ser salvo?”, a resposta de Cleveland é peremptória: “Sim”.
No que concerne
a aspectos técnico-formais e estéticos e às interpretações, A Senhora da Água conta com uma
fotografia assombrosa de Christopher Doyle – atente-se nos jogos de cores e luz
que demarcam os espaços seguros (interior dos apartamentos carregado de
ocres/cores quentes) e os inseguros (piscina, floresta e céu em azul/verde
frios/sombrios) –, com uma banda sonora muito discreta de James Newton Howard,
que se adequa na perfeição à estória que é contada, com interpretações bastante
credíveis e conseguidas de Paul Giamatti (Cleveland) e Bryce Dallas Howard
(Story), e com enquadramentos maravilhosos, de que são exemplo três “jogos de
espelhos”: Story em frente de Cleveland, no chuveiro, com a sua imagem
reflectida paralelamente na parede, em perfeita simetria; Story junto à
piscina, a acenar para Cleveland, com a sua imagem reflectida verticalmente na
água, novamente em perfeita simetria, enquanto se verifica um zoom-out que termina em “desfocagem”; Story
em frente a Cleveland, junto à piscina, no momento sublime em que ela é captada
e...
O filme foi um
“flop”, um fracasso de bilheteira e, também, muito maltratado pela generalidade
da crítica? Sim, e depois?! Desde quando é que a qualidade de um filme e o
prazer que podemos obter em disfrutá-lo são sinónimos de sucesso de bilheteira
e de incenso da crítica especializada? Siga o conselho do poeta Coleridge: suspenda
voluntariamente a incredulidade. E siga igualmente o meu: veja com os seus
próprios olhos, ouça com os seus próprios ouvidos, sinta com o seu próprio ser.
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