terça-feira, 16 de julho de 2013

LADY IN THE WATER: A “SURFAR NOUTRA ONDA”



Agora que estreou nas salas o último filme de M. Night Shyamalan, Depois da Terra, uma fantasia pós-apocalíptica protagonizada por Will e Jaden Smith, instalou-se-me a vontade de escrever não sobre este mas sobre um outro filme do cineasta, A Senhora da Água, de 2006, com Bryce Dallas Howard, Paul Giamatti e o próprio Shyamalan, que aborda as mais pertinentes questões para a vida actual neste mundo, em vez de para a vida num mundo depois deste…

Para este cineasta, as histórias fantásticas que filma, sejam elas sobre fantasmas (O Sexto Sentido), sobre super-heróis (Unbroken/O Protegido), sobre extraterrestres (Sinais), sobre monstros (A Vila) ou sobre ninfas (A Senhora da Água), são um pretexto para abordar questões profundamente filosóficas. Enquanto em O Sexto Sentido tínhamos a questão da verdadeira natureza da existência, em Unbroken/O Protegido tínhamos a questão da tomada de consciência dos poderes que possuímos, em Sinais tínhamos a questão da importância da fé, e em A Vila tínhamos a questão do posicionamento face ao medo de perdermos aqueles que amamos, em A Senhora da Água temos a síntese de todas essas questões: Qual o sentido da existência? Qual o nosso lugar e papel no mundo? Qual o resultado da fé (ou da sua ausência) na nossa vida? Qual o significado das tragédias que nos afectam a nós e aos outros? Que impacte têm as nossas acções e/ou a nossa inércia sobre o nosso futuro e o dos outros? De que modo poderão as nossas supostas fraquezas e os nossos alegados defeitos vir a ser úteis? Que relevância possuem determinados detalhes a que não damos importância? Estaremos manietados pelo determinismo ou, pelo contrário, seremos dotados de livre arbítrio? E em que é que a crença num ou noutro nos fortalece ou fragiliza?

Tal como em Sinais (o reverendo) e em A Vila (a comunidade), em A Senhora da Água temos personagens que vivem assombradas pelo seu passado trágico; personagens que desistem de viver “normalmente”, escudando-se numa existência, de certo modo, marginal (Cleveland, Mr. Leeds e outros moradores do condomínio). No entanto, essas personagens não conseguem fugir a esse passado, são movidas a lutar para esconjurar os demónios que as perseguem e a curar as feridas que as atormentam. Cleveland (personagem central no filme, tratando dos aspectos materiais do condomínio, mas cuidando também da alma dos seus moradores) consegue-o com a ajuda de uma ninfa do mar – uma imitação etérea de si próprio –, como que mostrando que a nossa salvação reside em nós próprios.

Neste sentido, A Senhora da Água, sob a máscara de fábula, de conto infantil com contornos fantásticos, em que estão presentes, de facto, todos os ingredientes – ninfas, receptores, guardiães, curandeiros, intérpretes, associações, monstros –, é, acima de tudo, um filme que nos confronta com as nossas dúvidas (e certezas) de seres adultos e que nos propõe a reflexão sobre elas. A Senhora da Água é também um enormíssimo testemunho de fé de Shyamalan na humanidade: perante a angústia e o desânimo de Cleveland, Story afirma: “Tu tens uma razão de ser. Todos os seres têm uma razão de existir”; mais tarde, perante a pergunta de Mr. Leeds “O Homem merece ser salvo?”, a resposta de Cleveland é peremptória: “Sim”.

No que concerne a aspectos técnico-formais e estéticos e às interpretações, A Senhora da Água conta com uma fotografia assombrosa de Christopher Doyle – atente-se nos jogos de cores e luz que demarcam os espaços seguros (interior dos apartamentos carregado de ocres/cores quentes) e os inseguros (piscina, floresta e céu em azul/verde frios/sombrios) –, com uma banda sonora muito discreta de James Newton Howard, que se adequa na perfeição à estória que é contada, com interpretações bastante credíveis e conseguidas de Paul Giamatti (Cleveland) e Bryce Dallas Howard (Story), e com enquadramentos maravilhosos, de que são exemplo três “jogos de espelhos”: Story em frente de Cleveland, no chuveiro, com a sua imagem reflectida paralelamente na parede, em perfeita simetria; Story junto à piscina, a acenar para Cleveland, com a sua imagem reflectida verticalmente na água, novamente em perfeita simetria, enquanto se verifica um zoom-out que termina em “desfocagem”; Story em frente a Cleveland, junto à piscina, no momento sublime em que ela é captada e...

O filme foi um “flop”, um fracasso de bilheteira e, também, muito maltratado pela generalidade da crítica? Sim, e depois?! Desde quando é que a qualidade de um filme e o prazer que podemos obter em disfrutá-lo são sinónimos de sucesso de bilheteira e de incenso da crítica especializada? Siga o conselho do poeta Coleridge: suspenda voluntariamente a incredulidade. E siga igualmente o meu: veja com os seus próprios olhos, ouça com os seus próprios ouvidos, sinta com o seu próprio ser.
 

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